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domingo, 11 de março de 2012

Como deve ser um Processo ?

Todos criticam as leis processuais. Alguns acham que elas deveriam ser menos formais; outros, que elas deveriam ter menos recursos ou mais poderes ao juiz, menos poderes, mais juízes, menos juízes, conciliação, mediação etc.

Há um certo consenso de que o processo, tal como compreendido, deve ser reformado, mas ninguém parece concordar exatamente o quê deve ser reformado e nem como.

Vamos fazer então um pequeno “experimento” filosófico para imaginarmos como seria uma estrutura básica deste processo.

Imagine, caro leitor, que você está lendo este artigo e, de repente, a polícia entra no seu aposento, prende você, levando a uma prisão com a única informação: a sua pena é de três anos de prisão.

Isso seria um justo processo ?

Ainda que não se tenha um conceito exato de Justiça, o sentimento gerado por tal situação é claro e demonstra que o ato seria uma arbitrariedade que ofende qualquer parâmetro, do mais liberal ao mais conservador. Afinal, sequer sabe-se: por que você foi preso ?

Imaginemos, então, que, no ato da prisão, o policial informe: você ficará preso por três porque roubou uma pessoa ontem.

Agora, há um motivo, mas isso é suficiente para conferir Justiça à prisão ?

Agreguemos, então, um julgamento.

Você é levado a um juiz. Ele olha você e diz: “Não gostei de você. Vá para a cadeia por três anos”. Esta sentença não parece razoável em qualquer Estado contemporâneo.

Vamos trocá-la por uma decisão que pelo menos diga quais são os fatos pelos quais você foi condenado e por que você foi condenado. Ela poderia ser: “Ontem, às 14h30, na Rua Central, você, empunhando uma arma, subtraiu da vítima Fulano da Silva a quantia de R$ 2000,00. Logo, a sua pena é de seis anos, nos termos do art. 157, §2º, inc. I, do Código Penal, e depois de cumprir três anos, será posto em liberdade condicional”.

Neste ponto, já temos uma acusação e uma sentença (que remete a fatos e ao Direito, ainda que resumidamente).

Porém, o nosso processo ainda é insuficiente.

Quem sabe o direito à defesa não melhora esta estrutura básica ? A você é dado um advogado que fala que você é uma boa pessoa, que acompanha a Internet, que tem o signo de escorpião com ascendente em aquário e mais nada.

O processo ainda parece injusto.

Afinal: quem disse que você cometeu este roubo ? Isso tem que ser provado. E você não teria o direito a tentar provar que não estava naquele local naquele dia com alguma testemunha que confirme que você estava na casa de outra pessoa ? Como chamar esta testemunha, que pode não querer ir à Justiça ? Você não teria o direito de pedir que obrigassem este seu amigo a vir dizer a verdade ? E se alguém mentir – um inimigo seu ou alguém da polícia que queira confirmar a estória da prisão – , não deveria haver uma pena contra ele ?

Parece lógico e razoável, portanto, que o processo deva começar com alguma acusação formal contra você, dando-lhe um certo tempo para procurar um advogado, elaborar a defesa (ligada aos fatos e não algo apenas para constar), pedir que sejam ouvidas algumas testemunhas ou outras provas e que elas sejam submetidas a algum contraditório. Por fim, que o processo tenha uma sentença que mencione os fatos considerados verdadeiros e o direito aplicável. E, considerando que juízes, advogados e promotores são humanos e podem errar, que haja, ainda, o direito a pelo menos um recurso contra a sentença, para que outro juiz (ou juízes) re-examinem o processo para confirmar ou corrigir a sentença.

Acusação, direito à defesa, direito à prova, julgamento racional com base nos fatos e na lei e possibilidade de um recurso. Tudo isso configura uma espécie de “mínimo essencial do processo” sobre o qual poderíamos acrescentar outras camadas – que não são supérfluas, mas sim aprimoramentos adicionais, como uma estruturação de defensorias dativas, direito a recursos contra decisões que não sejam a sentença, etc.

Os aprimoramentos ao “mínimo essencial do processo” podem, ou não, ser considerados importantes pelo legislador, num juízo de valor político sobre a oportunidade e conveniência de medidas que possam de um lado retardar o processo, mas de outro, aprimorar a segurança do cidadão.

Se este “processo-modelo mínimo” pode ser aplicado às ações criminais, em que o réu pode perder a liberdade, também pode para as ações cíveis, em que o réu irá, no máximo, perder patrimônio. Se pode o mais, pode o menos.

Isso leva a várias outras perguntas.

Uma série delas indaga sobre as prioridades que a legislação processual deve atingir. Afinal, qual a finalidade do processo ? Ele tem que ser rápido ? Ou seguro ? O que é rapidez ? Um ano, dois anos, um dia, um mês ? Quanto ele deve custar ? Deve ser gratuito para todos ? A gratuidade não geraria milhares de ações (paradoxo da praia: ela é bela, porque é vazia e exclusiva, mas por ser bela, atrai gente e deixa de ser vazia) ? Quem deve ter prioridade ? Só o idoso ? O menor ? Réu preso ? Mandado de Segurança ? Direito à saúde ? Mas se tudo é prioritário, o resultado não seria que nada será prioritário ?

Superados estes questionamentos e definidas as finalidades, surgem as perguntas sobre o modo-de-ser do processo que melhor atenda aos objetivos: é necessário que todo processo possa subir até o STJ e o STF ? Brigas de vizinhos, ladrões de galinhas, discussões tributárias sobre valores inferiores a certa quantia e outros processos precisam mesmo encher as prateleiras dos tribunais superiores ? Será que são necessários recursos extras para que o juiz esclareça sua sentença (embargos), para unificar o entendimento no Brasil inteiro (Recursos Especial e Extraordinário no STJ e no STF) quando a realidade do interior do Amazonas é diferente do centro urbano de São Paulo ? Ou isso é característica de uma “Federação no papel, mas Estado Central na prática” ? Por que não estender o depósito recursal dos processos trabalhistas para os processos cíveis ? Será possível que os desembargadores nas capitais podem examinar melhor as provas do que o juiz de primeiro grau, que ouviu as testemunhas olho no olho e conhece melhor a realidade da comarca do interior onde proferida o julgamento ? Neste caso, não poderia o recurso ser apenas com relação às matérias de direito ou contra julgamentos totalmente contrários às provas dos autos (como no caso dos julgamentos do Júri popular), ou seja, se a interpretação dos fatos que o juiz se ampara nas provas dos autos e não é manifestamente errada, não seria mais razoável que fosse privilegiada a visão de quem teve contato imediato com as provas ?

Se olharmos com atenção a Constituição de 1988, o processo-modelo, simples, célere, praticamente oral, mas com observância de princípios (regras) fundamentais – contraditório, ampla defesa, assistência jurídica etc. – está previsto, em linhas gerais, no art. 98 e foi detalhado na Lei 9099/1995, ainda que, na prática, em alguns locais, ele tenha sido interpretado e aplicado como o antigo Código de Processo Civil e Penal. Além disso, há diversos países que praticam modelos processuais verdadeiramente orais, aplicando versões deste “processo-modelo mínimo essencial”.

O mais importante é decidir quem fará estas escolhas fundamentais sobre os valores que devem reger o processo e sobre a forma de ser dos ritos processuais. Tradicionalmente, as escolhas têm recaído apenas sobre o Legislativo a partir de estudos vindos da Academia e pressão de grupos organizados. Nem sempre a lei imaginada pelos professores da academia será a mais adequada, pois aquilo que parece ideal no papel, não se converte, na prática, em avanço real. Os grupos de pressão, como Advocacia e Tribunais Superiores (que tem mais força política dentro do Judiciário: clique aqui sobre o tema), têm experiência para apresentar, mas também defendem interesses seus. Não é por outro motivo que as propostas fundamentais apresentadas pela OAB foram as relacionadas aos honorários dos advogados (vide aquiaqui e aqui).  

Aliás, foram curiosas as reações à Proposta de Emenda Constitucional que acabaria com a prática das quatro instâncias recursais e daria uma celeridade ao sistema judiciário, pois as críticas, feitas por quem está imerso no mundo jurídico, venceram a pressão social pela celeridade. Para o tema, com as informações não apaixonadas pelo tema, veja-se esta notícia e este comentário.

O exame dos projetos de novos códigos processuais (CPC e CPP) em andamento no Congresso revelam “mais do mesmo” com pequenas alterações pontuais que não resolverão o problema do Judiciário e nem representam verdadeiras reformas processuais (que, aliás, vem sendo feitas desde 1995 e não alcançam os resultados prometidos justamente porque nada mudam de significativo). Isso não é algo novo, pois em 2006 já era previsto que as reformas então praticadas eram insuficientes (clique aqui para ler uma versão mais sucinta de artigo que publiquei na Revista do Processo)– o que, infelizmente, se confirmou, passados anos das reformas.

Talvez o ideal seja apresentar estas questões à Sociedade para que discuta, reflita e decida sobre estas escolhas, calibrando o ajuste fino entre segurança, eficiência e justiça nos procedimentos. Um instrumento interessante seria a aplicação de plebiscitos (art. 14, I, da Constituição), com consultas anteriores à elaboração dos Códigos.

Evidentemente que existem aspectos jurídicos que devem ser resguardados (tais como o “processo-modelo mínimo”) e outros que, por constituírem Direitos Fundamentais, não podem ser objeto de consulta plebiscitária (sobre o aspecto contramajoritário de certos temas constitucionais, veja-se post anterior meu que cita a questão).


A reflexão sobre estes temas permite vislumbrar que a nossa prática de elaboração e discussão de códigos, fechada nos grupos de interesse ligados ao mundo jurídico, não dialoga com os valores da Sociedade, levando a criar grandes distâncias entre aquilo que poderia ser um justo e rápido processo daquilo que de fato é o processo real. Talvez a exposição pública destes temas possa revelar quem está interessado em manter as coisas no estado em que estão e quem realmente quer celeridade e um processo penal ou civil que funcionem.

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