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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

De quem é a flauta ?

Uma forma interessante de se expor argumentos e clarear as noções éticas e econômicas sobre a questão da Justiça é apresentar problemas práticos e tentar respondê-los. A obra de Michael Sandel (Justiça – abordada pelo colega George em seu blog: justica-o-que-e-fazer-a-coisa-certa/) é repleto destes exemplos, vários tirados de jornais (como o caso do aumento de preços pelos comerciantes após o furacão Katrina).

Um caso hipotético bem interessante é apresentado por Amartya: o problema de a quem dar a flauta quando três crianças a disputam com base em argumentos diferentes.

Neste cenário, existe uma única flauta e três crianças a querem, sendo incontroverso que:
[1] a criança “A” é a única que sabe tocar a flauta;
[2] a criança “B” é a mais pobre dentre elas e não tem outro meio de diversão; e
[3] a criança “C” foi quem fez a flauta com seu único e exclusivo esforço.

Para quem dar a flauta ?

Segundo ele, há várias respostas, conforme for o predomínio da teoria. Assim, uma teoria utilitarista reconheceria o direito de “A”, já que ela é a única que poderia tocar a flauta e gerar prazer à coletividade, ou, de forma alternativa, à criança “C”, se o utilitarista entender que o ganho social decorrente do direito de propriedade seria superior do que a sua desconsideração. 

Um igualitarista (Dworkin) reconheceria o direito de “B”, pois o seu estado de privação material seria atenuado e geraria um ganho em escala superior aos demais.

Por fim, uma posição libertária (Nozick) indicaria o direito de “C” pelo fato de que as pessoas tem direito ao fruto do que elas produziram.

Este problema é apresentado por ele para sustentar a sua tese de que são insuperáveis as divergências sobre a forma de distribuição dos bens/recursos e, portanto, não se deve buscar uma teoria perfeita, transcendental, mas apenas teorias comparativas que permitam reduzir desigualdades concretas.

Para ele, escolher uma das crianças seria escolher um critério e isso refletiria alguma forma de arbitrariedade.

Tirando de lado outras objeções ou argumentos quanto a esta tese principal de Amartya [uma exploração sobre a argumentação dele e algumas respostas ou objeções de outros filósofos está num artigo que é um catpítulo de um livro em coautoria, no prelo] e desconsiderando que o exemplo é uma abstração ideal que não ocorre no mundo real (ao menos da forma narrada) - que poderia ter outros elementos (e se houvesse uma quarta criança mais forte que simplesmente arrebatasse a flauta pela força ?) -, o fato é que, neste cenário, existe um problema da colisão de princípios básicos inerentes a cada uma das várias Teorias da Justiça.

Esta incapacidade de ordenar os diversos critérios que cada teoria transcendental propõe implica reconhecer a necessidade de uma metateoria de ordenação para cada tipo de problema específico.

No caso da distribuição da flauta, por exemplo, poderíamos entender que está implícito que, se houver solução, ela terá que, em certa medida, depender de uma escolha livre dos agentes e, por conseqüência, da comunidade em que vivem sobre quais são os critérios fundamentais. [vide aqui a resposta à hipótese cínica que defende apenas o uso da força sem nenhum princípio legitimiador da ação]  

Para isso, é necessário distinguir [a] o nível das propostas substantivas que geram os princípios e critérios de distribuição de uma Teoria da Justiça do [b] nível de uma teoria do procedimento de formulação e aplicação daqueles princípios.

Em outras palavras, uma coisa é a discussão sobre os critérios (dar ao mais forte, ao mais necessitado, ao mais útil), outra é a discussão sobre a origem destes critérios e a forma de resolver os conflitos entre eles; ou seja, Substância e Procedimento.

Não é à toa que vários filósofos perdem tanto tempo para apresentar a origem (contrato social, posição originária de Rawls, princípio discurso de Habermas, etc.) dos critérios e depois apresentam os respectivos critérios.
 
Parece razoável que a prevalência de um critério em determinado momento (pois na prática, parece-me difícil que um critério puro resolva todos os problemas) decorra de um juízo de valor emanado pelos membros da comunidade – ou, se apáticos forem, deleguem para seus representantes.

É possível cogitar-se, portanto, que a solução ao “metaproblema” se dê pelo estabelecimento das regras de discurso, notadamente as derivadas da teoria habermasiana, tal como a teoria da argumentação proposta por Alexy , atentando às especificidades das sociedades concretas, sobremodo no caso brasileiro.

Se estas regras procedimentais serão ou não observadas ou se as pessoas irão ou não participar passa do campo da discussão da Teoria da Justiça para o campo da ação política e prática de motivação e luta pelo que se entende correto.

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Afinal, o STF é um tribunal político ou jurídico ?

Há um questionamento interessante, muitas vezes trazido como crítica ao Judiciário, dizendo que o STF é um tribunal político, e não jurídico.

Isso leva a outras questões - normalmente não respondidas: existe uma diferença entre Política e Direito ? O que é Política ? Se existe a diferença, é possível dizer que um é "melhor" que outro ? Se o STF é político, as outras cortes e juízes não são ?

Sobre o conceito de Direito, já tracei algumas linhas [vide: o-sempre-discutido-conceito-de-direito](pretendo aprofundar isso no futuro), por isso o interesse agora é debater um pouco a ideia de Política.

De início, é algo quase evidente que Política não se confunde e não se reduz aos Partidos Políticos, sendo algo que permeia todas as relações. O senso comum não aceitaria dizer, por exemplo, que a atuação dos sindicatos nas greves não seria algo "político". Portanto, a noção de Política não pode deixar isso de lado.

Um dos conceitos usuais liga a Política à esfera de ação que busca conquistar e manter o poder superior dentro de uma comunidade (Bobbio). Parte do pressuposto da divisão entre os tipos de poderes (econômico, ideológico e força física) e que a possibilidade de usar a força policial e exércitos seria o maior poder [interessante como a imagem das forças armadas tomando as comunidades no Rio para implantação das UPPS reflete, em certa medida, esta noção de poder].

Mas será que esta redução do Político ao uso potencial das forças armadas é suficiente ?  Seria correto deixar de fora todas as demais ações sociais ? Voltando à política partidária, será que, por exemplo, a disputa presidencial entre Dilma e Serra era para ver quem ia ser o comandante das forças armadas ?

A resposta quase evidente destas perguntas mostra a insuficiência desta noção e leva à necessidade de aprimorá-la.

Olhando de novo a relação entre Política e Poder, lembra-se da percepção de que as relações poder existem onde houver ser humano. Dentro da família, na escola (professor vs. aluno; alunos vs. alunos; professores vs. funcionários, etc.), nas empresas, órgãos burocráticos, dentro dos próprios partidos; ou seja, cada microcosmo da Sociedade reflete algum tipo de relação de poder, que é algo fluido, exercido em cadeias, às vezes explicitamente, às vezes de forma sutil (Foucault). O poder nada mais é do que capacidade que um sujeito ou grupo de realizar a sua vontade, influenciando, condicionando ou determinando o comportamento de um ou mais pessoas (Bobbio).

Porém, não é apenas o exercício do poder físico. Caso contrário, teríamos que admitir que um assaltante está realizando Política, e não um ato ilegal e imoral [como sugere o senso comum, o crime não é uma ação política, mas se isso é, ou não, ilegal ou imoral, vale um post, ou uma dezena de posts].

É necessário algum tipo de legitimação deste poder, que pode ser um princípio democrático, o carismático (religioso, por exemplo) ou outro qualquer.

Será que bastaria ligar um princípio de legitimação deste poder para torná-lo político ? Abordei um pouco disso em outro post [vide: hipotese-cinica ], mas só isso seria insuficiente. Afinal, a máfia, bem ou mal, também usa de princípios com aparência de moral (família, lealdade etc.) e não se pode atribuir o caráter de ação política às suas operações.

Olhando o fato de que o senso comum também acharia estranho falar em política quando do exercício de uma relação de poder entre dois indíviduos, começa a ficar claro que a noção de Política envolve não só o Poder e o princípio de legitimação, mas também um grupo social. Assim, é possível falar em política dentro de uma empresa, de um sindicato e de uma Nação. Nesta linha, a relação entre indivíduos está no âmbito da Ética (moral), a relação entre indivíduo dentro de grupos, na esfera da Política (ação social).

Esmiuçado o conceito de Política, ao se examinar a questão inicial (o caráter do STF), parece ficar clara a resposta de que, quando o STF resolve processos que tenham eficácia sobre grupos sociais (em "juridiquês": ações com efeito erga omnes como ADI, ADC, ADPF, etc; ações individuais com reflexos gerals- RE com repercussão geral -, etc.), fica claro o caráter Político - com "P" maiúsculo - de sua decisão, ainda que o racicínio da Corte naquele caso seja a simples aplicação de um dispositivo legal (em juridiquês: a mera subsunção com interpretação literal). [Aliás, a aplicação literal de dispositivos de lei sem construção normativa nenhuma seria uma opção política clara de deferência ao Poder Legislativo].

Seria possível extrapolar isso para julgamentos individuais ? Se imaginarmos que a Corte dará prevalência aos seus próprios precedentes - tal como faz a US Supreme Court - então a conclusão lógica é que aquela decisão individual reflete uma opção que será permanente (ou eterno enquanto dure, risos) e, com isso, é uma decisão não só jurídica, mas também política.

Uma questão isso levanta  é se isso não representa uma absorção do jurídico pelo Político. Em outras palavras: existe mesmo uma diferença entre Direito e Política ? Aí o tema vale outro "post" completo...

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O dilema da "honestidade irracional" ou "razão desonesta".

Em seu livro "Justiça Política", Otfried Höffe apresenta um interessante problema: o dilema do pingente (ou o surfista de trem, adaptando à realidade brasileira), que usa o transporte público sem pagar, prejudicando os demais, que usam o ônibus e arcam com os custos daquela locomoção desonestamente gratuita [para simplificar este "post" - que discute os fundamentos da estratégia de coação para cumprimento das normas -, não entro na discussão acerca da falta de investimentos no serviço público de transporte e nem na gritante diferença das realidades brasileira e alemã].

Usando outras palavras, se o sistema pressupõe que todos serão honestos, então caso uma pessoa resolva ser desonesta, ele terá as vantagens do sistema (ônibus), sem as desvantagens (custos). 

Se o honesto perceber a possibilidade de desonestidade de alguma outra pessoa, então o racional, para ele, será ser desonesto, pois do contrário ele será uma presa fácil para os outros.

Num primeiro momento, o dilema aponta para uma certa racionalidade dos desonestos.

Porém - e aqui vem o "pulo do gato" -, se todos forem livres ilimitadamente para serem desonestos, então a convivência comum seria impossível, pois haveria a luta de todos contra todos e uma desconfiança geral que impediria qualquer empreendimento comum (como imaginar um contrato de promessa de compra e venda se ninguém confia em ninguém e não há nenhuma garantia ?).

De outro lado, se todos renunciarem voluntariamente à sua liberdade ilimitada, aceitando algumas limitações, o racional, para cada um, será agir de forma desonesta, a fim de obter maiores vantagens.

Como todos perceberiam isso, o caos estaria instalado, pois todos se tratariam segundo a medida exclusiva de suas forças e o "direito a tudo" se transformaria num "direito a nada".

Claramente Otfried pressupõe que a Moral irá refrear estes impulsos para alguns, mas não todos, o que parece um pressuposto pragmático correto, uma vez que, ainda que a grande maioria das pessoas obedecesse às leis apenas por um sentimento moral, a pequena minoria a-moral ou i-moral se aproveitaria.

Logo, tanto a liberdade ilimitada de todos quanto a liberdade limitada sem coação geram situações racionalmente propensas à desonestidade; como a longo prazo a desonestidade geral não compensa, este dilema é usado por Otfried para demonstrar e justificar a necessidade da sanção organizada para assegurar a liberdade.

Assim, só é possível ser verdadeiramente livre se houver um sistema que preveja penas para aqueles que forem desonestos por não renunciarem à liberdade ilimitada. Então, a liberdade possível é a liberdade com renúncia à parcela da própria liberdade.

Ao resultar na máxima de que a impunidade gera a desonestidade, a discussão pode parecer "chover no molhado", porém, do ponto de vista filosófico, a argumentação tem suas consequencias práticas interessantes:

[1] deixa clara a necessidade de um sistema de coerção;

[2] afasta a tese da Anarquia (vista como a ausência de um sistema institucionalizado - formal ou informal - de coação);

[3] torna irrelevante a discussão entre o Estado de Natureza Hobbesiano x Estado de Natureza Rousseau; e

[4] justifica, moralmente, a pena como reação à conduta ilegal.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Críticas à instituição do "Juiz de Garantias".

O artigo abaixo foi publicado hoje pelo site CONSULTOR JURÍDICO (http://www.conjur.com.br/2011-nov-10/criticas-logico-juridicas-instituicao-juiz-garantias-sao-necessarias)

O artigo é auto-explicável, mas depois de publicado e de ver uma mensagem de um colega, pensei num "fecho" ou "introdução"  que seria ideal :
"O juiz não tem compromisso em condenar ou absolver, e sim de ser imparcial e aplicar a Constituição e as leis do país". (pena que já tinha sido publicado o artigo, mas aqui no blog dá para incluir)

Eis o artigo:

Críticas lógico-jurídicas contra o juiz de garantias

Tramita na Câmara dos Deputados, sob o número 8.045/2010, o projeto de novo Código de Processo Penal (CPP), com a promessa de que sua aprovação irá colaborar na redução da impunidade no Brasil.
Há diversos problemas neste projeto, mas um dos que tem sido mais divulgados como a grande “novidade” ou “solução” trará, em verdade, um atraso no combate ao crime.

Trata-se do chamado “Juiz das Garantias”, isto é, a ideia de separar o juiz que atua na fase da investigação criminal daquele que comanda a ação penal, proibindo que presida a ação o juiz que tenha determinado ou decidido alguma medida liminar ou de prova durante o inquérito.

Esta proposta, porém, tem sofrido inúmeras críticas - muitas com razão, por sinal.

O presente artigo pretende arrolar algumas destas críticas, usando, tanto quanto possível, linguagem clara e fora do conhecido “juridiquês”, a fim de permitir que todos possam compreender os motivos que levam a crer que esta novidade será um retrocesso no combate à impunidade.

Uma das principais críticas é de ordem prática: nas comarcas do interior, que tenham poucos juízes, a novidade acabaria com as especializações de varas criminais ao obrigar que o juiz cível atue ou na investigação ou na ação penal, medida que, na realidade, atrasará mais ainda o processo. Embora o projeto permita que, no começo, o instituto não se aplique às comarcas com apenas um juiz, ele prevê que, no futuro, de acordo com as regras locais, será aplicável. Isso tornará mais lenta a situação dos processos em que o juiz da comunidade não poderá presidir a ação, transferindo tudo para outra cidade, a depender de viagens e deslocamentos ou do juiz vizinho ou das testemunhas, vítima, advogados e réus para aquele outro local. Este fato já foi apontado pelo CNJ, que, em sua nota técnica 10, de 2010, observou que 40 % das comarcas do Brasil tem apenas uma única Vara.

Outra crítica faz referência ao momento político de nascimento da proposta, pois logo em seguida a rumorosos casos envolvendo crimes de colarinho branco, em especial banqueiros, com prisões determinadas por juízes de primeiro grau.

Uma terceira crítica, agora com relação à academia, é que alguns teóricos apontam a necessidade desta separação como se fosse uma tendência internacional. A doutrina funda esta conclusão com base em julgamentos da década de 80 do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (casos Piersack vs. Bélgica e De Cubber vs. Bélgica). Porém, não observam que os precedentes citados referem-se a casos em que o juiz tinha sido “de fato” o órgão investigador (o que no Brasil já gera o impedimento na atuação do juiz que tiver sido policial ou promotor no mesmo caso) e não esclarecem que, posteriormente, na década de 90, a mesma corte internacional entendeu que esta diretriz não se aplicava ao caso do juiz que tivesse apreciado pedidos de prisão ou de produção de prova antes do processo criminal, esta sim a hipótese da novidade em questão. Para o tema, confira-se, com maiores detalhes: http://www.paginasdeprocessopenal.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=40:o-juiz-das-garantias-na-interpretacao-do-tribunal-europeu-dos-direitos-do-homem&catid=7:artigos&Itemid=6 .

Porém, as críticas que entendo mais importantes são de ordem lógica e jurídica, que são muito mais fortes e contundentes e, curiosamente, menos lembradas.

O projeto parte do pressuposto da "contaminação" do juiz pela prova, pelo qual o o juiz que defere uma liminar ou uma medida de investigação faria um um juízo de valor - ainda que parcial - sobre o mérito e, por isso, ficaria “suspeito” ou “tendente em condenar” (interessante que não se menciona o fato de que o juiz que indeferir as medidas ficaria mais tendente a absolver).

Nada mais falso, por múltiplas razões.

Primeiro: o fato de o juiz deferir uma prova no começo de um processo ou decidir sobre um flagrante não implica que, posteriormente, com outras provas realizadas, o mesmo juiz não possa ter outro convencimento.

O fato de um magistrado permitir uma interceptação telefônica à luz de indícios iniciais não quer dizer que depois, com a ação penal e a instrução, o juiz, estudando as provas e ponderando os argumentos, não possa absolver. Apesar de inicialmente ter tido a impressão de que havia indícios, o juiz pode perceber - e isso acontece várias vezes - que não há prova suficiente à condenação ou concluir que a pessoa é, na realidade, inocente. Ademais, a própria prova determinada pelo juiz pode revelar pelo seu conteúdo que o investigado é inocente !

Aliás, o fato de o Juiz ter iniciativa probatória ou conhecer de alguma medida durante o inquérito não significa que irá produzi-la contra o réu. O juiz busca a verdade possível, dentro das regras processuais, pois ninguém tem poderes paranormais para adivinhar como ocorreram os fatos.

Segundo: qualquer estudante de Direito sabe que existem duas distinções muito claras e importantes não observadas pelos defensores do “Juiz das Garantias”.

Uma coisa é o chamado “juízo de cognição sumária e provisório”, que é a decisão feita no começo de um processo à luz dos documentos juntados neste início (por isso sumário, já que não é completo) e que pode se modificar posteriormente, com novas provas (daí o nome provisório).

Outra coisa, bem diferente, é o “juízo de cognição ampla e definitiva”, no qual o juiz analisa todos os documentos juntados por todas as partes com base em todos os argumentos aprofundados (por isso, amplo) e, então, quando forma a sua certeza, sentencia o processo.

Tal como ocorre no processo civil, uma medida liminar pode ser dada àquele que, num primeiro momento, tem maior probabilidade de estar com a razão (em linguagem jurídica, plausabilidade do direito invocado e verossimilhança das alegações, ou, ainda, “fumaça do bom direito”), e, depois, constatar que a razão cabia à parte contrária. Isso é normal e faz parte do jogo [para eventuais erros, há os recursos].

A outra distinção esquecida é entre o juízo de admissibilidade - decidir se pode ser feita uma prova ou não (ex: rejeitar uma gravação clandestina) - e o juízo sobre o conteúdo da prova - decidir se esta prova confirma os fatos alegados.

Em outras palavras, por exemplo, o juiz pode determinar um exame de DNA para apurar a paternidade, mas o exame dizer que a pessoa investigada não é o pai !

O fato de o juiz decidir que, naquele processo, era admissível o exame de DNA não obriga que o juiz se “contamine” e obrigatoriamente vá concluir que a pessoa é o pai. Isto é algo óbvio que aparentemente foi esquecida na defesa deste projeto.

O terceiro argumento é o da inutilidade da medida. Isso porque, se esta “contaminação” existisse, então o “Juiz de Garantias” não impede que posteriormente o juiz se contaminasse por outras decisões que são dadas entre o início da ação penal e a sentença.

Se assim não fosse, o juiz que atua no inquérito teria que ser um; o juiz que recebe a denúncia teria que ser outro; o juiz que ouve uma testemunha teria que ser um terceiro; o juiz que toma o interrogatório seria o quinto (afinal, ele tem que ouvir o réu sem se deixar influenciar pelas testemunhas) e o juiz que decide teria ser o sexto...

Aliás, e houvesse contaminação do juiz por ter proferido decisões admitindo a produção de provas ou deferindo medidas cautelares em favor de uma das partes antes do julgamento do processo, então a mesma medida deveria ser criada no processo civil com as ações que  tratam de direito civil, administrativo, tributário, previdenciário, eleitoral e outras, porque também na jurisdição civil há medidas cautelares e de produção antecipada de provas.

E não bastaria criar Juiz de Garantias apenas no primeiro grau da jurisdição criminal!

Ele teria que ser criado também nos tribunais, porque uma determinada medida cautelar ou de produção de prova pode ser indeferida pelo juíz de primeiro grau e, em face de recurso, ser deferida por juízo de jurisdição mais elevada; nesse caso, o juiz da jurisdição mais elevada não só não está proibido de conhecer o processo posteriormente, como ocorerá justamente o contrário, isto é, ele é obrigado (ficará prevento) a conhecer de todos os demais recursos daquele processo, inclusive a apelação contra a sentença de mérito. Se o raciocínio do contágio fosse verdadeiro, ele dependeria também da apreciação de recursos com magistrados diversos.

Tudo isso para que um juízo proferido na fase anterior ou a colheita da prova anterior não "contaminasse" o juiz posterior.

O absurdo das conclusões demonstra a inutilidade da medida.

Em resumo, estes três argumentos demonstram que a inovação do “Juiz das Garantias” é uma medida desnecessária que, além das críticas práticas, políticas e contrárias à tendência internacional, ignora conceitos básicos da lógica do Direito. Ao final e ao cabo, será inútil, poderá gerar inúmeras discussões jurídicas com nulidades processuais que nada tem a ver com o mérito, gastando esforços que poderiam estar concentrados naquilo que realmente interessa.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

É possível mentir falando a verdade ?

É cena comum um administrador público dizer que a postura X "é republicana" ou que a medida Y é "democrática" ou que "serão tomadas as medidas corretas" etc.

Ele está mentindo ou falando a verdade?

Nem um nem outro, ou ambos (risos).

Ele está usando uma Falácia, isto é, uma forma de argumentação logicamente incorreta.

No caso, ele se utiliza de um tipo de falácia baseada no uso de expressões cujo significado não é claro ou ambíguo, mas que sugere um resultado, digamos, simpático, geralmente aceito e de fácil adesão.

Um exemplo é o uso da palavra “democracia”, que torna a pessoa propensa a aceitá-la, ainda que não haja um acordo semântico claro sobre qual o conceito de democracia que usam (direta? representativa? substancial ou formal?).

No Direito, por exemplo, seria o mesmo que uma situação hipotética em que um Tribunal decidisse simplesmente dizer que "a lei X ofende a dignidade da pessoa humana e por isso é inconstitucional".

A expressão "dignidade da pessoa humana" (DPH) é ampla, tem inúmeros significados conforme se interprete, e seu uso, sem maiores digressões no caso concreto ou exemplificação sobre o quê se entende por DPH acaba sendo uma falácia. [aliás, para esta expressão em particular, além da obra do Ingo Sarlet, Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais, o melhor estudo que já li sobre o tema, sem querer puxar a sardinha para a minha brasa, foi a dissertação de mestrado de minha esposa, Desirré, que, em 2006, analisou o tema primeiro no campo filosófico, a partir da obra de Hanna Arendt, e, depois de fixado referencial teórico, analisou-o na prática, ou seja, em todos os julgados do STF que haviam abordado o tema até aquela época. Pena que até hoje ela não publicou a dissertação. Eis o link http://siaibib01.univali.br/pdf/Desirre%20Dorneles%20de%20Avila%20Bollmann.pdf]

O uso deste tipo de falácia acaba se transformando na concretização da "katchanga" [contribuição humorística dada por um colega aqui de SC para o direito pós-constitucional (risos), que já foi objeto de teorização mais profunda pelo colega George, do CE, que, em seu blog, discorre sobre o tema à luz do Direito Constitucional e da teoria da argumentação de Alexy. Vale a pena a lida: http://direitosfundamentais.net/2008/09/18/alexy-a-brasileira-ou-a-teoria-da-katchanga].

De forma rápida, esta teoria da katchanga parte da seguinte piada: Num cassino da fronteira chega um fazendeiro rico que olha cada uma das mesas e se senta sozinho num canto do salão. Querendo tirar um pouco do dinheiro, o dono do cassino fica curioso e pergunta: - O Senhor não vai jogar nada ? - “No me gusta lo poker ni lo black jack. Solo juego la Catchanga”, respondeu o ricaço estrangeiro. O dono do cassino não conhecia este jogo. Ele volta ao salão e pergunta aos crupiês se algum deles conhece a tal da Catchanga. Como ninguém conhece, o dono do cassino teve uma idéia: chama os seus melhores crupiês e diz: “vocês dão as cartas para o pato e deixam ele jogando. No início, vamos perder um pouco de dinheiro, mas com o tempo vocês percebem as regras e no final nós o depenamos”. Os jogadores convidaram o cliente e sentam-se na mesa. Na primeira rodada, o ricaço pegou o maço, distribuiu três cartas para cada um. Todos ficaram parados olhando as cartas. O ricaço, subitamente, grita “Catchanga!” e pega todas as fichas da mesa. Na segunda rodada o mesmo aconteceu. Idem na terceira e na quarta. Isso já ia a noite inteira. O cassino já estava quase falindo e os crupiês não estavam entendendo nada. De repente, um dos jogadores pensou: “ele está nos enganando” e, ao receber as suas cartas, antes que o ricaço pudesse fazer algo, gritou: “Catchanga!”. Quando o jogador ia pegar as fichas, o ricaço baixou as suas cartas, disse: “No, no. Catchanga Real!” e levou o dinheiro...

Trocando em miúdos, o uso retórico de argumentos guardados na “manga” impede a solução racional da argumentação, gerando uma discricionariedade disfarçada de racionalidade.

Enfim, respondendo se é possível mentir falando a verdade, creio que, usando estes termos ambíguos, de fácil adesão, com mais conteúdo emocional do que racional, é possível argumentar com enunciados que a pessoa entende verdadeiros, embora chegue a resultados não tão verdadeiros assim. No dia a dia forense, os juízes se deparam com estes tipos de argumentos (e outros) que pretendem convencer o julgamento no sentido favorável de quem o utiliza. Às vezes, conseguimos identificá-los, às vezes, não (e para isso o sistema prevê os recursos para que tribunais com juízes mais experientes possam corrigir eventuais erros - a sobrecarga de trabalho, causada pelo excesso de recursos e facilidade de seu uso, pode impedir ou prejudicar esta análise mais acurada, mas isso é tema para outro "post").

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Uma introdução ao conceito de Justiça.

Um dos temas fundamentais para o Direito, a Ética, a Filosofia, dentre outros, é a Justiça.

Discutida há séculos em milhares de obras, gerou alguns consensos, mas há várias divergências, algumas talvez insuperáveis.

Um dos pontos que parecem ser consenso é que a Justiça é um Valor, isto é, uma operação mental ou sentimental de uma pessoa ou grupo de pessoas que qualificam, positiva ou negativamente, ações ou fatos. [Evidentemente estou simplificando um pouco a questão, pois existem divergências filosóficas sobre o que é um Valor e se ele está nas Coisas-em-si ou se está no sujeito que avalia a coisa. Por exemplo, os sofistas distinguiam o justo natural (objetivo e independente dos homens) do justo legal (subjetivo e decorrente da vontade dos homens)].

Sendo um Valor, a Justiça motiva as pessoas a fazerem o justo, indicando a orientação à ação. O sentimento e a idéia de justiça são poderosas forças motivadoras.

Porém, a maior divergência será sobre “o quê é justo” e “o quê é injusto”.

Essa discussão acaba abrangendo outros valores como a Igualdade, a Liberdade, a Felicidade e o Bem-Estar.

Algumas concepções de Justiça definem a conduta Justa como um Justo-em-Si, ou seja, como um Valor independente dos demais; outras, porém, definem o Justo ligado a outro valor que deverá ser maximizado, como a Felicidade.

Um dos primeiros conceitos de Justiça está ligado à Igualdade. Dar a cada um o que é seu. Tal como dizer o que é o justo, difícil é dizer o que é o seu. Com Aristóteles, a igualdade é vista sob duas principais perspectivas: a Justiça Corretiva (sendo o justo manter o equilíbrio entre perdas e ganhos nas relações entre as pessoas) e a Justiça Distributiva (distribuição das coisas que devem ser divididas entre os cidadãos que compartilham dos benefícios da coletividade, buscando a Justiça mediante distribuição proporcional à necessidade e/ou participação, conforme o caso).

Outra visão liga a Justiça à Liberdade (Kant). A ação é justa quando por meio dela a liberdade de um indivíduo pode coexistir com a liberdade de todos como uma máxima universal, ou seja, a liberdade não encontra outro limite que não seja a liberdade dos outros.

Rawls, em estudo contemporâneo propõe uma igualdade de liberdades com desigualdades aceitáveis só para vantagens acessíveis a todos (o tema vale um post futuro mais abrangente, detalhando sua proposta e apresentando algumas críticas a ela. Atualizado: acabo de fazer o post específico sobre Rawls, clique aqui).

Um quarto conteúdo de justiça refere-se a um Bem (Comum ou individual), como a Felicidade ou o Prazer, e à necessidade de maximização deste (Utilitarismo). A princípio, a idéia é quase óbvia e de adesão imediata. Porém, gera diversas questões, como [1] a eleição de qual Bem a ser maximizado (Felicidade ? Liberdade ?); [2] se é Individual ou Coletivo; [3] como se faz para medi-lo ?; [4] como resolver conflito entre o coletivo e o individual (seria ético, apesar de útil, sacrificar o modo de vida de algumas pessoas – por exemplo, uma tribo de índios – para aumentar a felicidade geral dos demais ?); [5] e os seus conflitos com limites morais e éticos (Por exemplo: seria útil extrair os órgãos de uma pessoa para transplantar e salvar a vida de várias outras ?).

Além destas divergências de conteúdo, há discussões ainda mais importantes, tais como saber se: [a] é possível haver algum consenso sobre o que é Justiça ou se a Justiça pode ser explicada racionalmente ou ela é um sentimento ? [b] Como tudo isso se relaciona com o Direito ? [c] É válida essa discussão ?

Há quem diga (Alf Ross), por exemplo, que é impossível uma discussão racional sobre a Justiça diante da existência de diversos critérios materiais, pois quando alguém diz “sou contra essa regra porque ela é injusta”, na verdade quer dizer “essa regra é injusta porque sou contra ela”. Para ele, o argumento de Justiça seria como dar uma pancada na mesa com vista ao convencimento emocional (persuasão) e não racional (argumentação). E há também quem diga (Amartya Sen) que a discussão sobre uma Teoria Transcendental de Justiça, que busca dizer “o que é o justo”, deva ser substituída por uma Teoria Comparativa, que busque apontar “como reduzir as desigualdades”.

Enfim, embora sem uma conclusão definitiva, prefiro ficar com quem (Sandel) entende que estudar a Justiça é válido, sim, nem que seja para esclarecer argumentos usados nas discussões Morais e Políticas (e, ainda Jurídicas, acrescento, mas isso é tema para outro Post, com mais espaço).


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Aos que chegaram até o final do texto, depois que eu postei este pequeno artigo, fiz vários outros, disponíveis neste blog, que abordam ou aprofundam algumas das questões aqui colocadas. Dentre eles, vale a pena dar uma olhada em [1] post em que fiz um grande retrospecto e resumo dos outros artigos, valendo como uma espécie de sumário;  ou, mais especificamente, no [2] que aborda o conflito entre concepções distintas de Justiça e o dilema disso decorrente [3] que discute a relação entre Direito, Política, Economia e Moral à luz da obra de Sponville; e [4] o que discute se vale a pena ou não discutir Justiça